INADIMPLÊNCIA NOS CONSELHOS GEROU CRISE NA JUSTIÇA FEDERAL, REVELA MINISTRO DO TCU

CONGRESSO NACIONAL DE GOVERNANÇA DOS CONSELHOS DE CLASSE 10/10/2025
por Mauro Camargo (jornalista)
INADIMPLÊNCIA NOS CONSELHOS GEROU CRISE NA JUSTIÇA FEDERAL, REVELA MINISTRO DO TCU
Resumo

GOVERNANÇA DOS CONSELHOS

Inadimplência nos conselhos gerou crise na Justiça Federal, revela ministro do TCU

Weder de Oliveira detalha como o TCU atuou para diagnosticar a inadimplência e induzir um novo modelo de gestão, focado em eficiência e prestação de contas à sociedade.

Mauro Camargo

Um problema de gestão interna dos conselhos profissionais — a alta taxa de inadimplência de anuidades — transbordou e gerou uma crise sistêmica em outro poder, o Judiciário. Em 2019, a situação chegou a um ponto em que mais de um terço das ações de execução fiscal em vários Tribunais Regionais Federais (TRFs) se referiam a cobranças dos conselhos, sobrecarregando a máquina judiciária com processos de baixo valor e pouca chance de recuperação. A revelação dessa “externalidade negativa” foi um dos pontos altos da palestra do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Weder de Oliveira, no Congresso Nacional de Governança dos Conselhos Profissionais, nesta quinta-feira, 9, em Brasília.

O ministro narrou como o TCU foi acionado em um esforço colaborativo para diagnosticar e propor soluções para o problema. “Em 2019, representantes do CNJ, do gabinete do ministro Luiz Fux, e do Fórum dos Conselhos, foram ao meu gabinete trazer um problema que o Tribunal não conhecia ainda”, relatou. O diagnóstico era alarmante: a Justiça Federal estava sendo afogada por ações para cobrar anuidades, e os conselhos, por sua vez, sentiam-se de mãos atadas, pois, sendo as anuidades consideradas tributos, não poderiam simplesmente deixar de cobrá-las.

Essa provocação levou o TCU a realizar uma auditoria específica sobre o tema, cujo resultado foi o Acórdão 2.422/2022. O trabalho revelou a dimensão da questão: em 2020, o montante a ser cobrado ultrapassava R$ 9 bilhões, mas a maior parte era composta por dívidas de pequeno valor. A auditoria identificou falhas estruturais na gestão da inadimplência, como a ausência de normas internas sobre cobrança e a inexistência de critérios para avaliar a carteira de recebíveis e identificar créditos com pouca ou nenhuma chance de recuperação. “Se o credor não tem a menor chance de pagar, de que vale uma ação judicial a respeito?”, questionou o ministro.

O trabalho do TCU não se limitou a apontar falhas. Ele também identificou boas práticas, como as do Conselho Federal de Contabilidade e do Conselho de Arquitetura, e compilou sugestões dos próprios conselhos, que iam desde a atualização cadastral até a criação de setores de cobrança e o uso de métodos alternativos. Como resultado, o acórdão do Tribunal recomendou a criação de normas para a recuperação de créditos, a definição de valores considerados irrecuperáveis para evitar a movimentação indevida da máquina pública e o estabelecimento de sistemas de custos para que cada conselho pudesse avaliar a viabilidade de uma cobrança.

Segundo Weder de Oliveira, essa atuação mais recente do TCU só foi possível por causa de um trabalho anterior, considerado um “divisor de águas” na relação com os conselhos: o Acórdão 1.925/2019. Essa auditoria, da qual também foi relator, fez pela primeira vez uma avaliação sistêmica do setor, buscando uma compreensão mais alargada sobre a governança, a gestão de receitas, os gastos com a fiscalização e a relação com os ministérios. “Governança, em última instância, é tudo que envolve a entidade para alinhá-la com o cumprimento de suas missões institucionais”, definiu.

O ministro reforçou que toda essa preocupação com a gestão se deve à natureza pública dos conselhos. Ele lembrou que, apesar de uma tentativa de privatizá-los em 1998, o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a mudança, entendendo que eles são, em essência, “entidades criadas pelo Estado para o exercício de funções de Estado”. Com um poder normativo que os assemelha a agências reguladoras e uma receita global superior a R$ 7 bilhões, os conselhos exigem mecanismos de governança e controle compatíveis com sua relevância.

Ao finalizar, Weder de Oliveira deixou duas reflexões cruciais para o futuro. A primeira é sobre a necessidade de identificar todos os stakeholders (partes interessadas), um conceito que se provou mais amplo do que se imaginava. “Até então, ninguém imaginava que a Justiça Federal fosse um stakeholder do conselho”, exemplificou. A segunda é sobre o accountability, ou seja, a quem os conselhos devem prestar contas. Para o ministro, essa prestação de contas vai além dos órgãos de controle, alcançando os próprios profissionais inscritos e, fundamentalmente, a sociedade. “De que forma se pode garantir que o interesse dos profissionais, das empresas e da sociedade se reflete dentro do modelo de governança? Isso é fundamental, porque onde não há um processo bem estabelecido dessa natureza, a primeira pergunta que a sociedade fará é: por que existe, se não cumpre as suas finalidades?”, concluiu.

Leia a íntegra da palestra do ministro Weder de Oliveira

Farei uma exposição que oferece um pano de fundo sobre os conselhos. Os conselhos são entidades sui generis, e a partir dessa premissa poderemos, ao final, fazer algumas reflexões necessárias e importantes, para as quais ainda não se têm tantas boas respostas. Essas reflexões têm relação direta com discussões sobre governança, ESG, gestão e uma gama de questões que serão, nos próximos anos, objeto de debates e aprendizados em todo o sistema, que conta com mais de 550 conselhos, entre federais e regionais.

Alguns aspectos gerais sobre os conselhos de fiscalização profissional: eles surgem no começo do século XX. O primeiro conselho foi a OAB, já em 1930. Depois, ao longo do século, nas décadas de 1940, 50, 60 e 70, novos conselhos foram criados.

Na Constituição de 1934, aparece pela primeira vez a necessidade de haver regulação específica em lei para o exercício de várias profissões. Cada uma dessas leis, relativas a um ou, às vezes, mais conselhos, aborda a questão das funções de uma forma não uniforme. Por exemplo, em uma dessas leis, encontramos como uma das funções dos conselhos disciplinar e fiscalizar o exercício das profissões. Em outra, estabelecer os mecanismos e requisitos para assegurar o exercício adequado das profissões. E em uma terceira, exercer o poder de polícia. Nem sempre encontramos, em uma mesma lei, as mesmas finalidades descritas da mesma forma. Isso demonstra que, se quisermos saber quais são as funções dos conselhos, teremos que fazer um apanhado de tudo o que foi definido em suas respectivas legislações.

Entre essas funções, uma muito importante é o poder de polícia administrativa. Os conselhos, classificados como autarquias corporativas ou sui generis, ao longo de toda a sua história, passaram por discussões doutrinárias, judiciais e no âmbito do Tribunal de Contas da União sobre sua natureza jurídica. Assim como as demais autarquias, há características comuns que os conselhos compartilham com entidades como o INCRA, mas também há características que os tornam autarquias especiais, corporativas. A principal delas é que seus dirigentes são escolhidos pelos profissionais inscritos e não são remunerados.

Ao longo de muitos anos, tivemos um debate, encerrado há pouco tempo, sobre a contratação de pessoal pela CLT ou não. Com o tempo, também foi definido que os concursos devem ser simplificados, mas ainda assim um processo seletivo é necessário para a contratação de pessoal. Os conselhos administram recursos tributários próprios e também não tributários, e possuem procuradorias próprias.

Temos, portanto, uma personalidade jurídica híbrida. Consequentemente, isso atrai diversas questões sobre governança, gestão e uma série de processos que dependem de saber qual é o direito público aplicável à entidade. Em 1998, tivemos uma tentativa legislativa de redefinir o modelo. O artigo 58 da Lei 9.649 pode ser entendido como uma lei geral dos conselhos, que, no entanto, não permaneceu em vigência em razão de uma ADI. Por esse modelo, chegar-se-ia a uma entidade privada, um serviço público que teria seu próprio mecanismo de controle, um sistema de autogoverno e nenhuma vinculação com a administração pública.

No entanto, esse modelo não foi validado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1717. O Supremo considerou inconstitucional a delegação a uma entidade de direito privado do exercício de funções públicas de poder de polícia, com poder de tributar, de fazer execução e o poder de polícia administrativo.

Dessa decisão do Supremo, podem-se tirar as seguintes conclusões, que são muito importantes para estabilizar o debate sobre a natureza jurídica, o direito aplicável e as discussões sobre governança e gestão: a lei não pode atribuir o poder de regular e disciplinar as profissões a uma entidade de direito privado; a lei não pode circunscrever o exame das prestações de contas exclusivamente ao âmbito interno; e não pode declarar a inexistência de qualquer vínculo hierárquico ou funcional com a administração. Os conselhos são uma entidade criada pelo Estado para o exercício de funções de Estado.

Estamos falando de entidades que, em seu conjunto, têm uma receita global superior a R$ 7 bilhões, com 10 milhões de profissionais e 2 milhões de empresas registradas sob sua jurisdição. O conselho tem um poder normativo que pode estabelecer limites e condições da atuação profissional de pessoas físicas e jurídicas, sendo uma espécie de agência reguladora do exercício profissional e de algumas ações empresariais. Consequentemente, há uma função pública de extrema relevância incorporada em suas finalidades, o que atrai mecanismos de gestão e de governança apropriados a uma entidade que desempenha funções públicas, e não a uma entidade de direito privado custeada por contribuições voluntárias.

Em 2019, o Tribunal prolatou o Acórdão 1.925, do qual fui relator, que é considerado um divisor de águas na relação TCU-Conselhos. Foi uma auditoria de grande porte, trabalhada ao longo de mais de um ano, que pela primeira vez fez uma avaliação sistêmica dos conselhos, procurando ter uma compreensão mais alargada. Esse estudo serviu para os próprios conselhos abordarem questões que ainda não haviam sido tratadas, como, por exemplo, os gastos com fiscalização. Qual era o percentual da receita aplicado na fiscalização, já que essa é uma de suas funções principais? A auditoria suscitou discussões sobre o que é considerado um gasto de fiscalização, partindo da análise da contabilidade e da forma como os recursos são gastos.

Nessa auditoria, discutiu-se a governança, o controle da gestão, o problema da supervisão ministerial, a atuação da CGU e das auditorias internas, e os processos de autocontrole da instituição. Tudo isso é o que se discute em governança. Governança, em última instância, é tudo que envolve a entidade para alinhá-la ao cumprimento de suas missões institucionais. Foram debatidas as atividades finalísticas, a gestão de receitas e a natureza jurídica das taxas cobradas.

Podemos dizer que, nas décadas mais recentes, o que se discute é quais normas de direito público são integralmente, parcialmente ou não aplicáveis aos conselhos. Isso por um processo de depuração de decisões judiciais, discussões acadêmicas e decisões do TCU. Entre elas estão o regime jurídico dos empregados, os instrumentos de transparência, o relacionamento com o poder público e a atuação das instâncias de controle. O Tribunal de Contas da União tende a avançar no entendimento de como os conselhos estão cumprindo suas finalidades, para além das denúncias rotineiras sobre má aplicação de recursos, buscando realizar um trabalho mais estrutural para ajudar a melhorar a gestão e a governança.

Mais recentemente, tivemos o que denomino de externalidade negativa das ações de execução fiscal nos conselhos. Em 2019, representantes do CNJ e do Fórum dos Conselhos foram ao meu gabinete para trazer um problema que o TCU ainda não conhecia: mais de 30% a 40% das ações de execução fiscal em vários TRFs se referiam a cobranças de inadimplentes de anuidades. Isso gerava custos para a Justiça Federal, e os conselhos não sabiam o que poderiam fazer, já que não podiam simplesmente deixar de cobrar tributos.

Realizamos, então, uma auditoria para compreender o problema da inadimplência e induzir o aperfeiçoamento da gestão. Isso resultou no Acórdão 2.422/2022. Em 2020, falávamos de um montante de mais de R$ 9 bilhões a serem cobrados, em sua maioria de valores pequenos. Foi um trabalho colaborativo, e alguns achados dessa auditoria foram: a ausência de normas na maior parte dos conselhos sobre a cobrança de inadimplentes, o que tornava a cobrança assistemática; e a inexistência de normas sobre a avaliação da carteira de recebíveis, para analisar a chance de recuperar um crédito.

Também foram verificadas boas práticas em vários locais, como no Conselho Federal de Contabilidade e no Conselho de Arquitetura. À época, perguntamos aos conselhos o que poderia ser feito. Surgiram muitas ideias, desde a terceirização da cobrança até a criação de setores próprios, atualização cadastral e métodos alternativos de cobrança. O acórdão do Tribunal, a esse respeito, propôs determinações e recomendações para se trabalhar com normas sobre recuperação de crédito, definir valores irrecuperáveis, promover melhorias na gestão e controle interno, e estabelecer sistemas de custos para definir o que será cobrado ou não.

Para finalizar, há dois pontos importantes para reflexão sobre o modelo de governança nos conselhos. O primeiro é identificar quem são os stakeholders do conselho, ou seja, as partes interessadas. Até então, ninguém imaginava que a Justiça Federal fosse um stakeholder, mas esse caso mostrou que era um órgão afetado pela gestão da inadimplência.

O segundo e último ponto é: a quem os conselhos são accountability? A palavra inglesa, que não tem uma tradução perfeita, refere-se ao dever de quem exerce poder público de prestar contas. A quem os conselhos devem prestar contas? Atualmente, há o TCU e a CGU. A supervisão ministerial não existe mais, mas o Tribunal já definiu que alguma forma de acompanhamento do governo federal deve existir. E, claro, em relação aos seus profissionais. Como o conselho presta contas a eles? De que forma se pode garantir que o interesse dos profissionais, das empresas e da sociedade se reflita no modelo de governança? Isso é fundamental, porque onde não há um processo bem estabelecido dessa natureza, é possível que abusos aconteçam e que a entidade não exerça sua finalidade. E quando ela não exerce sua finalidade, a primeira pergunta que o Legislativo, os profissionais e a sociedade farão é: por que existe? Por que estamos pagando tributos se não cumpre sua finalidade?

O modelo de governança busca avaliar quem são os stakeholders e examinar a quem se deve prestar contas. Isso é importantíssimo de ser considerado na rediscussão do modelo de gestão e de governança dos conselhos.

 

PAINEL 3 - GOVERNANÇA ESG NOS CONSELHOS DE CLASSE, PRINCÍPIOS DE GESTÃO, COMPLIANCE E TRIBUTÁRIOS

Presidente de mesa: Dr. Lucas Laupman, Coordenador Acadêmico de Direito Regulatório da ESA/RJ

Expositores: Ministro do TCU Weder de Oliveira; Dr. Leonardo de Medeiros Fernandes, coordenador jurídico do Conselho Federal de Nutrição – CFN; Dr. José Trindade Monteiro Neto, consultor legislativo da câmara dos deputados federais.

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