O BISTURI DO CONTROLE: A NOVA ERA DA GOVERNANÇA PARA OS CONSELHOS PROFISSIONAIS SOB A MIRA DO TCU
Resumo
OLHAR DE CIMA
O bisturi do controle: a nova era da governança para os conselhos profissionais sob a mira do TCU
Em fala contundente, o ministro Benjamin Zymler detalha a jornada dos conselhos, da sua natureza jurídica à fiscalização do Tribunal, e decreta: amadorismo na gestão não será tolerado.
Mauro Camargo
A luz amena do teatro do Hotel Royal Tulip, em Brasília, projetava uma atmosfera de formalidade e expectativa na última sexta-feira, 10 de outubro. No palco, encerrando o Congresso Nacional de Governança dos Conselhos Profissionais, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Benjamin Zymler, preparava-se para uma intervenção que se revelaria menos uma palestra protocolar e mais um diagnóstico preciso — por vezes, cirúrgico — do estado da arte da administração nessas entidades. Com a plateia repleta de dirigentes e gestores, Zymler, um engenheiro de formação com a mente forjada na lógica do controle, dispensou os floreios e foi direto ao cerne da questão que pairava sobre o evento: o que é, afinal, a governança, e como o TCU a enxerga quando aplicada aos conselhos de fiscalização profissional?
Agradecendo as palavras de introdução com um toque de humor erudito — “mentiras sinceras me interessam”, citou, quebrando o gelo inicial —, o ministro rapidamente mergulhou na complexidade do tema. “O termo ‘governança’ é, de certa forma, indeterminado. É difícil precisar cientificamente o que é. Mas todos nós sabemos exatamente o que é, como se sente a governança, como ela se espraia por um sistema”, afirmou, trocando a rigidez da definição acadêmica pela percepção pragmática de quem lida diariamente com as consequências, boas e más, da gestão pública.
Era o ponto de partida para uma análise de quase uma hora que dissecou a relação intrincada entre o órgão de controle externo e as dezenas de profissões regulamentadas do país. A fala de Zymler não foi um mero rol de regras ou jurisprudência; foi a construção de uma narrativa que conectou a natureza jurídica dessas entidades, nascidas para proteger a sociedade, com as ferramentas modernas de controle, que hoje vão muito além da simples verificação da legalidade de um contrato. O recado final, cristalino, foi o de que a era do improviso e da gestão reativa está com os dias contados. Para o TCU, a governança deixou de ser um conceito etéreo para se tornar uma exigência concreta, com metodologia, responsabilidades e, principalmente, consequências.
Natureza híbrida: o DNA público dos Conselhos
Para entender a lupa que o TCU posiciona sobre os conselhos, Zymler argumentou ser essencial revisitar sua identidade fundamental. “São autarquias especiais, com características distintas”, frisou, lembrando que essa condição as coloca inequivocamente dentro do perímetro da administração pública, ainda que com peculiaridades notáveis. Essa natureza autárquica, de caráter público, não é uma questão de semântica, mas a pedra angular que justifica toda a estrutura de controle.
O ministro recordou a tentativa, no passado, de privatizar essa identidade através da Lei nº 9.649/98, um movimento que, segundo ele, pretendia delegar a uma entidade privada “prerrogativas tipicamente públicas, como o poder de polícia, de tributar e de punir”. A questão foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na emblemática Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 1.717, que reafirmou a inconstitucionalidade de tal delegação. “Não seria possível a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado”, citou Zymler, ecoando a decisão da Suprema Corte. Essa definição é crucial, pois ao manejar recursos oriundos de contribuições compulsórias — as anuidades, que possuem natureza tributária — e ao exercer poder de polícia sobre as profissões, os conselhos administram interesses que transcendem a própria corporação.
Essa dupla finalidade é um ponto de tensão e de equilíbrio constante. Por um lado, protegem a sociedade, garantindo que profissões de alto impacto, como medicina e engenharia, sejam exercidas com técnica e ética. “As consequências de falhas na atuação de um engenheiro podem ser dramáticas”, exemplificou. Por outro, possuem um “viés natural, corporativo”, no sentido de se autoprotegerem contra desvios que manchem a reputação da classe. É nesse equilíbrio que a governança deve atuar, garantindo que o interesse público prevaleça sobre o meramente corporativo. E é exatamente por essa razão que o artigo 70 da Constituição os alcança de forma inexorável: “Todo aquele que gere dinheiro público tem o dever de prestar contas”. A partir daí, a jurisdição do TCU se torna não apenas uma possibilidade, mas uma obrigação constitucional.
A revolução silenciosa da Lei 14.133: o fim da era do “projeto básico e dotação orçamentária”
Se a natureza jurídica é o alicerce, a gestão de contratos e licitações é onde a estrutura da governança é mais testada. E foi neste ponto que a palestra de Zymler ganhou contornos de advertência. O ministro dedicou uma parte substancial de sua fala para esmiuçar a mudança de paradigma trazida pela nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021), classificando-a como uma “mudança extraordinária” em relação à sua antecessora, a Lei nº 8.666/93.
Sob a égide da antiga lei, explicou, a fase pré-licitatória era tratada de forma “muito singela”. Basicamente, exigia-se um projeto básico, um orçamento detalhado e a previsão de recursos. “A lei silenciava sobre todo o processo em que será feita a governança da licitação”, pontuou. A nova lei, ao contrário, desloca o centro de gravidade do processo para a sua etapa inicial, a fase de planejamento. A governança, agora, não é um acessório, mas o motor da contratação.
Zymler listou os novos artefatos que se tornaram obrigatórios: o Estudo Técnico Preliminar (ETP), a gestão de riscos e o plano anual de contratações. O ETP, em particular, foi destacado como “talvez a grande novidade”, a ferramenta pela qual a administração define o que precisa, pesquisa o mercado e desenha a solução antes mesmo de pensar em publicar um edital. Não se trata mais de simplesmente comprar um produto ou serviço, mas de planejar uma solução para uma necessidade pública.
A consequência mais impactante dessa nova lógica, alertou o ministro, recai sobre a alta gestão. O artigo 11 da Lei 14.133 estabelece o dever do gestor máximo de implementar as condições para que a lei seja aplicada em seu pleno potencial. Em outras palavras, a responsabilidade pela falha não é mais apenas do pregoeiro ou da comissão de licitação. “As mais altas autoridades poderão eventualmente responder perante o Tribunal de Contas por uma omissão, uma culpa omissiva, pela falta de adoção de medidas tendentes a habilitar aquele conselho a praticar plenamente as regras da 14.133”, declarou Zymler. A falta de capacitação da equipe, a ausência de estrutura ou a negligência em implementar uma gestão por competências deixam de ser desculpas e passam a ser a própria causa da responsabilização.
Para dar concretude ao alerta, o ministro revelou dados de uma auditoria em curso no TCU, da qual é relator, que mede o grau de maturidade na implementação da nova lei em todo o Brasil. O índice médio, numa escala de 0 a 1, é de apenas 0,53. “Ainda bastante insatisfatório”, sentenciou. Sem essa maturidade no planejamento, institutos mais complexos e disruptivos da lei — como o diálogo competitivo, a contratação integrada e a matriz de riscos — tornam-se inaplicáveis. “Não se pode dar saltos mais longos e mais altos sem que os ‘músculos das pernas’ dos entes estejam suficientemente robustos”, metaforizou.
O custo social dessa deficiência é trágico. Zymler trouxe à tona um número que classificou como “absolutamente impactante”, fruto de outra auditoria do TCU: 50% das obras realizadas com recursos federais no Brasil estão paralisadas. “Eu brinco sempre que, num regime parlamentarista, se o primeiro-ministro fosse ao parlamento justificar que metade das obras públicas estão paralisadas, óbvio que ele não permaneceria no cargo”, provocou, lamentando que, talvez, a sociedade brasileira tenha se acostumado com notícias ruins. O recado implícito era claro: a má governança nas contratações não é um problema burocrático, é um ralo por onde escoam bilhões de reais e a esperança da população em serviços públicos de qualidade.
Calcanhar de Aquiles: déficit de fiscais e a caixa-preta da transparência
A análise do ministro não se limitou às atividades-meio. Com o mesmo rigor, ele avançou sobre a finalidade precípua dos conselhos: a fiscalização do exercício profissional. E, aqui, o diagnóstico foi igualmente preocupante. Citando auditorias operacionais do TCU, Zymler revelou um “déficit extraordinário de fiscais” em muitos conselhos regionais. “Vi inúmeros conselhos que só tinham um fiscal e conselhos que não tinham nenhum. E, na maioria, o número de conselheiros excedia o de fiscais”, relatou. A constatação levanta uma questão fundamental: como pode uma entidade de fiscalização cumprir sua missão constitucional sem o seu principal ativo humano para tal?
A auditoria também apontou uma falha de governança sistêmica: a “falta de supervisão do conselho federal” sobre os regionais. Segundo o ministro, a lei torna imprescindível que os conselhos federais exerçam um papel de coordenação e supervisão, mas o que o Tribunal percebeu foi uma desconexão. “Os conselhos federais, em regra, não tinham informação dos conselhos regionais sobre as fiscalizações realizadas em concreto”, afirmou. Essa fragmentação impede a criação de uma estratégia nacional de fiscalização e a disseminação de boas práticas, deixando cada entidade regional à própria sorte.
O ponto mais crítico da exposição, contudo, foi reservado para o tema da transparência. Com base em um acórdão recente (nº 1648/2024), relatado pelo ministro Jhonatan de Jesus, Zymler pintou um quadro sombrio sobre o cumprimento da Lei de Acesso à Informação. A auditoria avaliou o nível de transparência ativa — a disponibilização de informações de ofício, sem necessidade de provocação — nos portais dos conselhos.
Os resultados, nas palavras do ministro, “não são bons” e atingem um “nível realmente preocupante”. O dado mais alarmante: 49% dos 273 conselhos de fiscalização profissional analisados “não publicam nenhuma informação em formato de dados abertos”. Pior: o levantamento revelou um paradoxo, no qual conselhos com alta arrecadação, e, portanto, com mais recursos para investir em tecnologia e transparência, apresentavam baixos níveis de conformidade.
Como resposta, o TCU determinou um prazo de 120 dias para que os sistemas de conselhos elaborem e publiquem um plano de dados abertos. “Espero que isso tenha sido resolvido ou esteja em processo de resolução”, disse Zymler, deixando no ar a promessa de um monitoramento rigoroso. A mensagem era de que a era das “caixas-pretas”, onde a gestão de recursos e as ações de fiscalização ocorrem longe dos olhos do público e dos próprios profissionais registrados, chegou ao fim.
A filosofia do controle: o “namoro” e os “dentes” do TCU
Na parte final de sua apresentação, Benjamin Zymler ofereceu à plateia uma visão panorâmica da filosofia de atuação do Tribunal de Contas. Ele explicou que o TCU, como um órgão que “ultrapassa os limites da ‘roupa justa’ da tripartição dos poderes”, exerce seu controle de três formas distintas: corretivo, sancionatório e operacional.
O controle corretivo (ou mandamental) é objetivo: diante de uma irregularidade, como um edital falho, o Tribunal pode determinar sua anulação. O sancionatório é repressivo: busca-se a responsabilização pessoal do gestor que agiu com dolo ou erro grosseiro, aplicando multas e outras penalidades. Mas foi no terceiro tipo, o controle operacional, que o ministro se deteve, descrevendo-o como a mais moderna e sofisticada ferramenta do TCU.
“O controle operacional é um controle de governança, de desempenho”, definiu. Nele, o foco não é o ato isolado, mas o resultado finalístico da gestão. O Tribunal não pergunta apenas se o conselho licitou corretamente, mas se ele está, de fato, protegendo a sociedade de maus profissionais.
Nesse campo, Zymler introduziu um conceito fundamental: o “controle de segunda ordem”. O TCU, explicou, não pretende e não pode usurpar a competência dos órgãos fiscalizados. “Nós não podemos usurpar a competência discricionária dos senhores”, garantiu. O papel do Tribunal não é se tornar um superconselho de medicina ou de engenharia, mas sim avaliar se o conselho de medicina e o de engenharia estão exercendo bem suas próprias competências.
A principal ferramenta desse controle não é a caneta da sanção, mas a recomendação. E aqui, Zymler usou uma metáfora curiosa e poderosa. “É um ‘namoro’ que o Tribunal faz com o órgão, buscando induzir, impulsionar, motivar a adoção de métodos que possam melhorar os resultados”. E, com uma sinceridade desarmante, completou: “Se os senhores não seguirem a nossa recomendação, sabem o que vai acontecer? Nada”.
A aparente falta de poder coercitivo, no entanto, é enganosa. A força desse controle, explicou, reside na exposição pública e na pressão social e política que se segue, um modelo inspirado no mundo anglo-saxão. “A crítica chega à sociedade, chega ao parlamento, e eles são instados a responder”, disse. A ameaça não é a multa, mas a manchete do jornal, a cobrança no Congresso, a perda de legitimidade perante a sociedade e a própria classe profissional.
Caminho à frente: profissionalizar ou perecer
Ao encerrar sua fala, Benjamin Zymler amarrou todas as pontas. A complexa teia que envolve a natureza jurídica, as novas exigências de contratação, as falhas na fiscalização e na transparência e a filosofia evoluída do controle externo convergiu para uma conclusão única e inescapável: a necessidade de profissionalização da gestão.
O ministro reconheceu as dificuldades, especialmente dos conselhos menores, com estruturas administrativas deficientes. Afirmou que o Tribunal leva isso em consideração ao analisar responsabilidades. Contudo, deixou claro que a solução para essa fragilidade sistêmica passa, necessariamente, por um fortalecimento da governança.
A convocação final foi direcionada aos conselhos federais, para que “exerçam plenamente a sua supervisão” sobre os regionais, orientando, capacitando e traçando caminhos para que todo o sistema possa evoluir. A mensagem era de que a jornada para a maturidade da gestão deve ser coletiva, coordenada e, acima de tudo, intencional.
Ao descer do palco, Benjamin Zymler não abandonava apenas uma análise técnica, mas um mapa detalhado dos desafios e um ultimato velado. Para os conselhos profissionais do Brasil, o recado do TCU foi dado em alto e bom som: a governança não é mais uma opção, é uma condição de sobrevivência e legitimidade em um país que não pode mais se dar ao luxo de conviver com a ineficiência e a paralisia.
O Congresso Nacional de Governança dos Concelhos Profissionais foi realizado pela ABFP – Academia Brasileira de Formação e Pesquisa.
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