07/02/2023 | Categoria: Congressos
Ações necessárias na Reforma Administrativa em Estados e Municípios

Passamos a listar, agora, as ações que compõe uma espécie de roteiro da formulação de uma proposta sólida de reforma administrativa, em se tratando de entes subnacionais.

  1. Definição das diretrizes específicas de atuação

Em primeiro lugar, é necessário definir as diretrizes específicas de atuação. O foco será a gestão administrativa, ou a redução do impacto fiscal da folha? Ou ambos? A ideia é atingir apenas os novos ingressantes no sistema, ou também os atuais servidores? As alterações legislativas que se buscam são apenas em normas mais gerais (Constituição/Lei Orgânica e Estatuto), ou também serão analisadas as legislações específicas de cada carreira? No caso de serem abordadas carreiras específicas, quais delas serão objeto de análise?

Essa fase inicial de definição das diretrizes é absolutamente decisiva para o sucesso do projeto: quanto mais específicas e realistas as diretrizes, mais o trabalho tende a fluir; nesse sentido, muitas vezes “menos é mais”: alterar a legislação de muitas carreiras de uma vez só pode ser uma briga política difícil de se vencer, ao passo que uma pequena alteração no Estatuto dos Servidores pode ter um impacto maior, sem que seja necessário “personalizar” carreiras específicas, que tendem a se sentir “atacadas”.

Um importante diretriz específica a ser estabelecida diz respeito a quem vai fazer a proposta de reforma, e em quanto tempo. Vão ser utilizados recursos humanos do próprio ente (Secretaria de Planejamento, Procuradoria), ou vai ser contratada uma consultoria externa? Logicamente, há vantagens e desvantagens: a formação de uma equipe interna tem a vantagem do custo (não há custo financeiro adicional para o ente) e de tratar com pessoas que já conhecem a legislação específica do ente, mas, por outro lado, tende a acentuar o conflito de interesses e ter efetividade relativamente mais baixa, pois que os servidores encarregados de elaborar a proposta serão por ela atingidos. Em relação à consultoria externa, há a desvantagem do custo e da existência de uma curva de aprendizagem da realidade estadual/municipal, porém, em compensação, reduzem-se os problemas de conflitos de interesse e pode haver uma cobrança maior por resultados. É preciso atentar sempre, contudo, para a efetividade da entrega: é necessário assegurar que, mesmo no cenário de atribuição da elaboração da proposta a uma consultoria externa, que o trabalho só seja finalizado com a entrega não apenas de estudos/pareceres (que têm uma estranha atração pelas gavetas mais profundas), mas que efetivamente sejam elaboradas minutas de proposições legislativas com justificação e avaliação de impacto legislativo (um produto bem mais palpável e efetivo, “pronto para o uso2).

  1. Mapeamento da legislação, com análise de riscos jurídicos

Estabelecidas as diretrizes específicas de atuação, é necessário realizar um mapeamento da legislação em vigor, com o intuito de verificar: a) normas que precisam ser revogadas; b) normas que precisam ser modificadas; e c) normas que precisam ser criadas. Preferencialmente, esse mapeamento deve ser realizado por profissionais especializados em legislação (geralmente, mas não necessariamente, advogados), a fim de se assegurar com relativo grau de certeza que não sejam deixadas brechas para posterior judicialização da reforma3.

Mesmo quando tais atividades de análise jurídica forem realizadas por uma consultoria externa ou pela procuradoria do Estado ou Município, esse mapeamento deve também ser realizado com o auxílio de servidores estaduais/municipais da área de gestão de pessoas ou de pagamento, que conhecem a legislação na prática e podem alertar para os maiores problemas enfrentados no dia a dia. Além disso, uma abordagem com profissionais de economia, finanças públicas ou estatística pode ajudar bastante, de modo a auxiliar quais aspectos da legislação têm maior impacto financeiro-orçamentário.

Mais ainda: recomenda-se que seja feita uma pesquisa com a procuradoria do estado (ou do Município, se houver) e uma análise de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça do Estado, pelo menos, com a finalidade de mapear possíveis focos de judicialização que uma reforma legislativa possa resolver. Há muitas demandas individuais ou coletivas sobre um tema específico da legislação? O ente tem sofrido condenações a pagar determinada verba controversa? Essas são algumas das questões que podem orientar a reformulação da legislação, com foco na redução desses pontos de judicialização, com ganhos de segurança jurídica e minimização de impactos financeiros negativos para o respectivo ente federativo.

  1. Elaboração de estudos sobre legislação de pessoal da União e de outros entes federativos (benchmarking)

Em matéria de legislação de pessoal, a comparação é necessária e útil. Num tema politicamente tão sensível, um argumento potencialmente decisivo nas negociações e no convencimento da opinião pública diz respeito a saber como outros entes (especialmente a União) têm tratado do tema. A elaboração de um benchmarking temático, semelhantemente ao que foi apresentado no item 2, pode ajudar não apenas na tomada de decisão técnica e por parte dos atores políticos, mas também pode ser um argumento e tanto para a montagem da estratégia de comunicação da reforma.

  1. Verificação de meios para reduzir despesas com pessoal

Com base no mapeamento da legislação e dos riscos jurídicos, nas diretrizes específicas definidas e na análise comparativa de como os demais entes da Federação tratam o tema, fazem-se presentes as condições para se “bater o martelo” (ao menos provisoriamente) sobre quais as soluções que serão efetivamente encampadas na reforma.

Algumas das mais frequentes são:

  • Extinção de adicionais baseados exclusivamente no tempo de serviço;
  • Extinção de incorporação de funções de confiança
  • Revisão do fundamento e das condições para a percepção de gratificações
  • Flexibilização das regras sobre jornada de trabalho
  • Desburocratização das regras sobre licenças médicas
  • Instituição de regras claras sobre capacitação dos servidores
  • Revisão dos critérios de promoção/progressão, a fim de criar mecanismos que valorizem o mérito e a produtividade
  • Revisão da carreira, de modo a evitar que os servidores cheguem ao estágio final dela cedo demais
  1. Elaboração de pareceres e minutas de projetos de lei e propostas de emenda à Constituição Estadual ou à Lei Orgânica Municipal

Como já dissemos, é (infelizmente) muito comum ver trabalhos que se destinam a estudar a reforma administrativa de um determinado ente, ou de um determinado órgão, serem considerados “finalizados” com a entrega de um parecer diagnóstico. Esse deve ser o primeiro passo, mas jamais a entrega da reforma, que só se considera concluída (do ponto de vista técnico) com a apresentação de minutas de proposições legislativas (propostas de emenda à Constituição Estadual ou Lei orgânica Municipal, projetos de lei e, se for o caso, propostas de decretos).

Tais minutas representam um trabalho mais concreto sobre o qual se debruçar, e um ponto de partida bem mais específico para o árduo trabalho de tramitação de uma proposta de reforma administrativa.

No caso dos Estados (e dos Municípios que contem com procuradorias próprias), a Procuradoria deve necessariamente ser participante desse processo, seja na própria elaboração da minuta, seja na análise das minutas apresentadas pelo grupo de trabalho (seja ele interno ou externo).

Desnecessário dizer que o trabalho de redação de minutas de proposições legislativas é altamente especializado, sendo bastante recomendável que seja atribuído a especialistas em legislação (e em legislação de pessoal, se possível), embora não necessariamente advogados.

  1. Avaliação de impacto das medidas sugeridas (avaliação de impacto legislativo ex ante)

A avaliação de impacto legislativo ex ante, além de ser uma exigência constitucional (em relação às proposições legislativas que aumentem ou criem despesas de natureza obrigatória), nos termos do art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), é uma ferramenta poderosa de tomada de decisão política. Com efeito, medidas politicamente muito duras, mas que trazem benefícios comparativamente pequenos em termos fiscais, podem ser descartadas; e medidas com potencial fiscal relevante, mas mais pontuais, podem ser lidas como o “núcleo inegociável” de uma reforma. Para se ter uma ideia, é frequente que, nas alterações realizadas no Estatuto dos Servidores, apenas a extinção de adicionais temporais e da incorporação de funções de confiança responda por 80% do impacto fiscal ao longo de 10 anos, o que mostra claramente quais as partes “negociáveis” ou “inegociáveis” de uma Reforma.

Mais ainda: para além da análise técnica, uma boa avaliação de impacto legislativo ex ante pode ser utilíssima na negociação política, como instrumento de convencimento. A contrario sensu, basta ver como foi objeto de (devidas) críticas a falta da explicitação da metodologia e da memória de cálculo para embasar o “1 Trilhão” de “economia” (rectius, redução de crescimento) da Reforma da Previdência do Governo Federal (EC nº 103, de 2019). Um gráfico didático sobre o impacto de uma reforma administrativa num horizonte dos próximos 5 ou 10 anos pode ajudar sobremaneira a tramitação da proposta.

Em suma: embora as questões fiscais não sejam obviamente o único motivo para se fazer uma reforma administrativa, trata-se de um ponto obviamente essencial. Se, no Brasil (ao contrário do que ocorre na União Europeia4), não é obrigatória a apresentação da avaliação de impacto legislativo ex ante de todas as proposições, em se tratando de uma reforma administrativa pode-se dizer que isso se torna um imperativo de ordem fática.

 


João Trindade é Consultor Legislativo do Senado Federal. Mestre (IDP) e Doutor (USP) em Direito Constitucional. Advogado, sócio do Trindade Camara Retes Barbosa Magalhães Pinheiro Advogados Associados, responsável pelos estudos que embasaram a Reforma Administrativa do Estado do Rio Grande do Sul, em parceria com a Comunitas. Professor dos cursos de Especialização em Direito Constitucional e de Mestrado em Direito e em Administração Pública do IDP.

 


[2] Ainda que seja necessário, no caso dos Estados, e dos Municípios que possuam procuradoria própria, que esta analise as minutas, uma vez que lhes cabe com exclusividade a prestação de assessoria jurídica ao Executivo.

[3] A revogação de leis que instituem benefícios, por exemplo, pode gerar demandas baseadas em alegação de inconstitucionalidade por omissão, se tais benefícios estiverem previstos na Constituição Estadual, o que não é incomum. É comum se pensar ser bastante revogar as leis, mas não se pode negligenciar o risco de uma condenação do ente público por eixar de efetivar um mandamento previsto em nível constitucional.

[4] MORAIS, Carlos Blanco de (coord.). Guia de Avaliação de Impacto Normativo. Coimbra: Almedina/Ministério da Justiça, 2010.

  o autor | Autor: João Trindade Cavalcante Filho
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