A contratação direta emergencial e o controle externo
07/01/2022 | Categoria: Licitações
É pacífico na doutrina e na jurisprudência que o dever de licitar concretiza verdadeira política pública, seja pelo assento constitucional aderente ao tema, seja pela obediência a determinados princípios, que, por usuais à Administração Pública, galvanizam o exercício da função administrativa, notadamente o princípio da igualdade.
Por tal razão, a contratação direta é comumente vista com ressalvas, muito embora seja, em determinadas situações, a única possibilidade disponível ao poder público ou mesmo a melhor escolha, manejada pelos mais variados critérios. Logo, objetivamente, à contratação direta não se deve, necessariamente, infligir uma habitual maledicência.
Digno de nota que o controle externo nem sempre se interessa pelas razões e fundamentos que deram cabo à contratação direta, cultivando ressalvas que se desbordam do próprio controle, tendo em vista que condenar é sempre mais simples do que exercer o aprofundamento sobre os motivos que desaguaram na ausência de licitação. A bem da verdade, a ausência de fundamentação e motivação por parte dos agentes envolvidos no processo de contratação pública é frequentemente deficiente e, por precária, oportuniza a reprimenda de quem exerce a interpretação sobre o ato administrativo sujeito ao controle.
Tangenciar as mais diversas hipóteses de contratação direta é inviável para o presente texto, razão pela qual o recorte aqui empreendido se desenha sob as franjas da dispensa em face da emergência, outrora presente no artigo 24, IV, da Lei nº 8.666/1993 e agora encontrado no artigo 75, VIII, da Lei nº 14.133/2021, que assim dispõe:
"Artigo 75 — É dispensável a licitação:
VIII — nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso".
O dispositivo legal anuncia vários questionamentos. Primeiramente, embora não conste na norma, os órgãos de controle, em especial o Tribunal de Contas da União (TCU), já firmaram o entendimento no sentido de que a situação emergencial é um fato e, como tal, precisa ser remediado por meio da contratação direta, independentemente da causa originária da emergência. A diferenciação quanto à emergência natural e a emergência "fabricada", decorrente da incúria administrativa, passa a ser relevante para fins de responsabilização do agente administrativo que, por desmazelo, deu causa à emergência.
Tal posicionamento dos órgãos de controle é, em certa medida, louvável porque, ao tempo em que possibilita a contratação emergencial, soluciona, pragmaticamente, o problema. No entanto, adentra no plano conceitual de uma possível desídia, mitificada, no mais das vezes, na hipotética ausência de planejamento [1]. Mais do que tudo, o órgão de controle externo se debruça sobre o que já ocorreu e, com olhar voltado ao passado, consegue enxergar o que poderia ter sido feito. Dito de outro modo, a visão do controle externo é utópica porque passeia por tempos verbais indefinidos e vazios.
Logo, quando se trata de contratação direta emergencial, é elementar identificar, primeiramente, quais soluções estavam disponíveis à Administração anteriormente à concretização da dispensa da licitação. Por assim ser, a contratação emergencial cuja emergência não seja decorrente de fenômenos naturais não necessariamente deve ser passível de repreensão, sendo necessário avaliar os motivos pelos quais a emergência despontou.
Em um segundo plano a ser avaliado — um tanto mais questionável, bem se diga —, reside no temor em concretizar a contratação direta, muito embora exista a inconteste emergência. Tal receio impera como decorrência das desenfreadas responsabilizações na seara do controle externo. É que, mesmo existindo a emergência, o gestor tende a optar por manter a situação emergencial e seguir o rito burocrático da corriqueira disputa por meio do processo licitatório.
Ocorre que, mesmo com essa inércia administrativa, prepondera, para o administrador público, uma ilusória dose de segurança, a despeito da manutenção da prejudicial situação emergencial. É o pior dos mundos, assaz danoso ao administrado, que suporta os ônus oriundos dos prejuízos que comprometem, entre outros, a continuidade na prestação dos serviços públicos.
Um exemplo prático que demonstra essa realidade ocorre, por exemplo, com o rompimento da estrutura de uma ponte que liga uma determinada comunidade rural à zona urbana de um município. Para não sofrer qualquer advertência do controle externo, o administrador público opta por efetivar a licitação, muito embora seja consciente de que, com a ampla disputa que advém do certame, o tempo para finalização do processo e consequente adjudicação do objeto ao licitante vencedor seja demasiadamente mais longo. Ao assim agir, o gestor, "apagando as canetas", parte de um falso pressuposto de que não será, pessoalmente, responsabilizado.
Por outro lado, utilizando o mesmo exemplo acima descrito, e diante da inconteste situação emergencial, não há negar que qualquer disputa procedente de um vagaroso processo licitatório, cuja intensidade — sobretudo quanto ao planejamento — foi expandida sob o contexto da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, causará ao administrado, consumidor do serviço público, danos irreparáveis, decorrentes de uma duvidosa proteção pessoal de quem deveria haver optado pela contratação com base no artigo 75, VIII, da Lei nº 14.133/2021.
A solução para todo esse impasse já foi tracejada bem antes do advento da mencionada Lei nº 14.133/2021, quando, por ocasião das modificações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), promovidas pela Lei 13.655/2018, o legislador, no artigo 20, obrigou a avaliação das consequências práticas na tomada de decisão. Assim sendo, pode ser mais arriscado proceder a uma disputa por meio de um processo licitatório do que, propriamente, efetivar a contratação direta com base na existente emergência.
Ainda trafegando pela norma constante do inciso VIII do artigo 75, outro ponto que merece destaque diz respeito à impossibilidade de recontratação de empresa já contratada com base no mesmo dispositivo. O legislador buscou atalhar a subjetividade que deve ser abolida das contratações públicas. Indubitavelmente, a melhor solução caminha na contemporização entre a contratação direta e a deflagração de outro processo licitatório, condicionando a manutenção do contrato emergencial à finalização da licitação.
Ocorre que, pelos mais variados fatores, o processo licitatório pode não ter fim, ora pela judicialização, ora pelos mais variados recursos administrativos que delongam a ultimação do processo. Em tal situação, permanece a emergência e, por isso, há, à luz de uma interpretação literal do texto legal, uma autorização para a contratação direta, desde que não se recontrate a mesma empresa, que se encontra presa a um contrato com duração máxima de um ano.
Ideologicamente, como já salientado, a norma tenta eliminar preferências subjetivas em relação ao contratado. Todavia, existem situações, principalmente em pequenos contratos, em que não existem, além do próprio contratado emergencialmente, outros possíveis interessados no objeto do contrato. Em tal situação, a recontratação, por ser a única solução disponível, é imprescindível, desde que devidamente motivada.
Concludentemente, mas sem ousadas terminações, é induvidoso que a contratação emergencial deve, rigorosamente, ser vista com a máxima ressalva e como medida excepcional. Contudo, jamais deve ser repugnada tão somente em face de sua concretização prática, maiormente quando se comprova ser a única medida disponível à Administração Pública para salvaguardar o interesse público (primário).
Assim sendo, a interpretação do artigo 75, VIII, da Lei nº 14.133/2021 deve ocorrer concomitantemente à leitura do artigo 20 da Lindb, conferindo a ambos os dispositivos legais o mesmo valor jurídico, nomeadamente quando as consequências práticas da decisão devam ser levadas em consideração, não apenas na esfera administrativa, como também, segundo literalidade da norma, nas esferas controladora e judicial.
O receio da contratação direta indevida (artigo 73 da Lei nº 14.133/2021 [2]) e do crime de contratação direta ilegal (artigo 337-E do Código Penal Brasileiro [3]) não pode se sobrepor à carência do administrado pela prestação do serviço público. A ponderação sobre o conceito prático de emergência deve levar em consideração os mais variados fatores, necessariamente distraídos de valores abstratos e de tempos verbais imprecisos, conjugáveis em momento posterior.
Conteúdo gentilmente cedido pelos autores a Acadêmia, originalmente publicado no Conjur.
[1] Sobre o tema, já tivemos a oportunidade de escrever nessa coluna. https://www.conjur.com.br/2021-out-01/licitacoes-contratos-mito-planejamento-exorbitante-lei-141332021
[3] https://www.conjur.com.br/2021-abr-08/opiniao-contratacao-direta-ilegal-lei-licitacoes
o autor | Autor: Guilherme Carvalho
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Doutor em Direito. Mestre em Constituição e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP, 2014). Especialista em Direito Constitucional (IDP, 2011). Bacharel em Ciências Jurídicas pelo Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB, 2009). Professor de Direito Constitucional Aplicado da Pós-Graduação em Direito Legislativo do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB/Senado Federal). Professor de Controle de Constitucionalidade do curso de Graduação em Direito do IESB. Professor de Estudos de Caso de Direito Constitucional do curso de Graduação em Direito do IDP. Autor de diversas obras, dentre elas “Processo Legislativo Constitucional” (2ª Edição, Editora...
Doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Uniceub. Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera. Ex-Procurador do Estado do Amapá – Classe Especial, com atuação na área consultiva e nos tribunais superiores em Brasilia (DF). Professor de graduação e pós-graduação em Direito em Brasília. Palestrante e professor de pós-graduação em várias faculdades. Advogado militante, com atuação prioritária nos tribunais superiores e na área de licitações e contratos. Bacharel em Adm...